Solidariedade, 'quase um palavrão'!

Não
deixa de ser eloquente que, depois de sua acolhida protocolar na
Palácio Guanabara e da peregrinação a Aparecida,
o primeiro pronunciamento público do papa Francisco no Rio
tenha ocorrido, justamente, na visita a uma comunidade pobre.
Engana-se, porém, quem pensa que foi apenas um ato teatral do
"papa dos pobres".
Foi
daquela tribuna, do meio dos pobres da Varginha, que o papa
pronunciou o discurso social mais importante de sua passagem pelo
nosso país. Com palavras simples e diretas, como é de
seu estilo, para que todos pudessem entender, ele falou aos pobres,
mas também se dirigiu a quem tem poder e posses, em todos os
níveis, locais e mundiais. Sua fala, de fato, retrata uma
síntese da Doutrina Social da Igreja.
Observou
o papa Francisco que os pobres são capazes de dar ao mundo uma
grande lição de solidariedade, "palavra
frequentemente esquecida ou silenciada, porque incômoda".
Dispensando o texto, ele observou que o conceito de solidariedade é
tido quase como um palavrão, que não faz parte de certa
concepção do convívio social nem deve ser
pronunciado.
A
noção de solidariedade desenvolveu-se, com sempre maior
clareza, no ensino social da Igreja do século 20. No egoísmo
e no individualismo, que permeiam e regulam, com frequência, as
relações sociais, cada um, cada grupo ou país é
levado a reivindicar e afirmar seus próprios direitos, sem ter
em conta a sua contribuição para o bem comum. Na
atitude solidária há sempre a preocupação
com o bem comum. A solidariedade é um dos princípios
éticos basilares da concepção cristã de
organização social, política e econômica.
Não
se trata de vaga compaixão, distante e descomprometida, diante
dos males de outras pessoas próximas ou distantes; ao
contrário, é o empenho firme e perseverante pelo bem de
todos e de cada um; uma vez que todos dependem uns dos outros, todos
também são responsáveis uns pelos outros.
A
solidariedade é um dever moral, que decorre dos vínculos
de natureza existentes entre todos os seres humanos, membros da mesma
espécie e de uma grande família; todos estão
vinculados uns aos outros, no bem e no mal; a sorte de uns está
ligada à sorte de todos. Estamos todos no mesmo barco.
O
dever de solidariedade é o mesmo tanto para as pessoas como
para os povos. Seria alienante a ordem socioeconômica que
dificultasse ou não estimulasse a solidariedade social. Se
dependemos de todos, não nos podemos desinteressar dos outros
e nenhum povo pode pensar em "ser feliz sozinho"; nem
devemos esquecer, nas decisões que hoje tomamos, os que virão
a integrar, depois de nós, a família humana.
Algumas
questões, como a economia, a ecologia e a família,
requerem, de maneira mais clara, decisões e atitudes
solidárias. A economia mundial é claramente
interdependente e as decisões dos governantes da cada país
precisam levar em conta também o conjunto da economia mundial.
Além disso, "negócios obscuros", tráfico,
mau emprego ou desvio do patrimônio público são
atitudes marcadamente antissolidárias. Também no campo
da ecologia nossas decisões e atitudes, no bem e no mal,
envolvem os outros e as futuras gerações. E a família,
base da vida social, é o primeiro e mais importante sujeito da
educação para uma vida solidária; nela se
aprende a compartilhar, a ajustar as necessidades de cada um às
possibilidades e condições de todos.
Negar
o princípio da solidariedade levaria também a negar uma
das principais forças propulsoras da civilização,
para adotar novamente a lei da selva, onde os mais fortes sobrevivem
e os mais fracos são abandonados à própria
sorte. Os mecanismos perversos que destroem o convívio social
só podem ser vencidos mediante a prática da verdadeira
solidariedade. Só dessa maneira muitas energias positivas
poderão desprender-se inteiramente em prol do desenvolvimento
e da paz. Se é verdade que a paz é fruto da justiça
(cf. Is 32,17), podemos afirmar também: opus solidarietatis
pax - a paz é obra da solidariedade.
O papa
Francisco apelou à sociedade brasileira para que não
poupe esforços no combate às injustiças sociais
e na luta pela inclusão de todos os seus membros. A respeito
da "pacificação" de comunidades dominadas
pelo crime organizado, advertiu que a pacificação
duradoura e a felicidade de toda a sociedade só serão
conseguidas quando não houver mais pessoas abandonadas ou
deixadas à margem: "A grandeza de uma sociedade aparece
no modo como ela trata os mais necessitados, aqueles que não
têm outra coisa além de sua pobreza".
Com
palavras simples e mansas, mas firmes, voltou a afirmar o que já
disseram, antes, outros pontífices em documentos do ensino
social da Igreja: diante das intoleráveis desigualdades
sociais e econômicas, que clamam aos céus, a Igreja está
do lado dos pobres e não pode calar sua voz.
Em vez
de palavras contundentes sobre as manifestações de rua,
realizadas mesmo durante a sua presença no Rio de Janeiro, ele
se dirigiu aos jovens: "Vocês que possuem uma
sensibilidade especial frente às injustiças, mas muitas
vezes se desiludem com notícias que falam de corrupção,
de pessoas que, em vez de buscar o bem comum, procuram seu próprio
benefício, nunca desanimem, não percam a confiança,
não deixem que se apague a esperança".
É
verdade, a realidade pode mudar quando a solidariedade deixar de ser
um conceito antissocial. "Procurem ser os primeiros a praticar o
bem e a não se acostumar com o mal", concluiu o papa.
Cardeal Arcebispo de São Paulo Dom Odilo Scherer
Cardeal Arcebispo de São Paulo Dom Odilo Scherer